quinta-feira, 15 de abril de 2010

Processo de Escrita

Ainda me espanta que tantas pessoas pareçam pensar que o que um escritor faz é sentar-se em frente ao computador, escrever "Capitulo 1" e que quando escrever "Fim", a coisa está feita. É claro que o processo de escrita varia de escritor para escritor, mas conheço poucos que não façam algum trabalho de preparação e ainda não encontrei nenhum que não faça pelo menos uma revisão sumária ao que escreveu antes de o submeter. E acho que não quero conhecer: ou serão daquelas criaturas geniais impossíveis com que não se pode falar, ou daquelas criaturas impossíveis que se julgam geniais e com que não se quer falar.

O meu processo de escrita varia um pouco de projecto para projecto (histórias diferentes exigem coisas diferentes, dependendo sobretudo do seu tamanho e da maneira como o texto vai ser estruturado), mas está mais ou menos solidificado.


1. Ideia

Esta é a parte em que eu não faço realmente nada e a parte em relação à qual as pessoas me perguntam mais. Eu culpo o Romantismo e a ênfase excessiva dada à inspiração.

A verdade é que me aparecem ideias para histórias com uma frequência irritante e aquilo que lhes dá origem pode ter as naturezas mais variadas: um documentário, um filme ou um livro; uma pessoa que vejo na rua, uma frase ouvida de passagem ou uma paisagem; um artigo de jornal ou uma fotografia; uma mistura de duas ou mais dessas coisas que se unem para criar qualquer coisa nova.

As ideias são a parte fácil, é só dar alimento variado ao cérebro e elas aparecem sózinhas. Transformá-las em qualquer coisa legível é que exige algum talento e muito trabalho.


2. Pesquisa Informal

Esta fase nem sempre acontece. Depende do que estou a escrever. Tem a ver com ler coisas que se relacionam com o contexto da história que quero contar, mas sem me preocupar demasiado com pormenores. No fundo, é providenciar ao cérebro algum material de base para ajudar na estruturação da história.


3. Fermentação

Preciso de andar uns dias (ou uns meses) com a história a revirar de um lado para o outro na cabeça, antes de conseguir fazer seja o que for dela. Mais uma vez, é uma fase em que não faço grande coisa, senão dar-lhe uma abanadela de vez em quando para a fazer chegar ao ponto.


4. Planificação/Esboço Zero

É uma delineação básica da história, porque eu preciso de saber onde vou para conseguir escrever. Raramente o faço para textos curtos e não posso passar sem ele nos romances e novelas.

Normalmente uso o método de fases da Zette e não me costumo preocupar muito com enredos ou arcos de história. Limito-me a enumerar os eventos pela ordem em que os quero contar, por isso é que lhe chamo mais vezes esboço zero do que planificação.

Por exemplo, este é um excerto do outline de O Anel das Estrelas:


Capítulo 1: Ataque ao São José
POV: Menendez; ESPAÇO: São José, próximo de Moçambique; TEMPO: 22 & 23 Jul 1622

1. Menendez pensa nas atitudes de Cecília e no modo como estão a perturbar a tripulação, já afectada pela doença. AMANHECER

2. Os homens queixam-se da comida. Menendez teme um motim.

3. Menendez observa Cecília mais uma vez e pensa em como a viagem tem estado a correr mal. ANOITECER

4. Menendez está na sua cabine quando um marinheiro o vem avisar de que o que parecem ser navios pirata se estão a aproximar. NOITE

5. Trata-se de uma frota composta por navios Ingleses e Holandeses, que os ataca. A tripulação do São José defende o navio o melhor que pode, mas estão em desvantagem numérica e muitos deles estão doentes.


Aquilo que ponho no esboço zero nem sempre se revela no produto acabado. Por vezes, enquanto estou a escrever, a história toma outra direcção. Muitas vezes, enquanto estou a fazer este trabalho, estou também a escrever pedaços de texto que me vão ocorrendo.



5. Revisão do Esboço Zero


Antes de começar a escrever, dou sempre uma vista de olhos ao esboço zero para tentar identificar falhas lógicas e para organizar alguma informação: espaço, tempo, pontos de vista... Depende do projecto. Para Um Vale Entre as Nuvens, cujo esboço zero acabei recentemente e que é um romance epistolar, nesta fase estive a determinar através de que diários, cartas e artigos de jornal a informação de cada ponto seria transmitida.


6. Primeiro Esboço

Esta é a parte mais difícil para mim. Implica manter o traseiro na cadeira o tempo suficiente para escrever e não ligar ao facto de que metade do que vou produzir nesta fase é lixo, puro e simples.

O melhor para mim é escrever este primeiro esboço o mais depressa possível, para não dar tempo aos meus editores internos de começarem a chatear. Normalmente o meu primeiro esboço está cheio de anotações do género: [CENA DE BATALHA]; [MAIS DESCRIÇÂO]; [VIAGEM] e [VERIFICAR].

De há uns anos a esta parte comecei a fazer os primeiros esboços à mão. Aumenta-me a produtividade por estranho que pareça, talvez porque escrevo mais depressa à mão do que o que dactilografo e consigo manter um ritmo mais satisfatório. Ou talvez porque como não estou a trabalhar ao computador, não caio em certas distrações.


7. Primeira Revisão

Implica ler o texto todo e tomar notas do que é necessário acrescentar ou tirar. Depois passo o texto a computador, preencho lacunas e faço as modificações que anotei e outras que me vão surgindo. Normalmente é nesta fase e na seguinte, quando necessário, que faço uma pesquisa mais apurada, para garantir que os pormenores estão bem.


8. Segunda Revisão

Nova leitura. Nesta preocupo-me mais com incongruências na história e com o fluir da linguagem.


9. Revisão Final

Acerto a formatação do texto, procuro gralhas e quaisquer outros pequenos erros que tenham escapado nas duas primeiras.


Normalmente, depois disto, o livro está acabado. É claro que há projectos que precisam de mais uma revisão ou duas antes de eu estar satisfeita com o resultado e, para além disso, quando um projecto é rejeitado, faço sempre uma revisão rápida antes de o enviar para outro lado, porque costumo partir do princípio que o problema pode ser do texto e não de quem o rejeitou.

7 comentários:

WhiteLady3 disse...

Bastante interessante. Não sou das pessoas que pensa que um escritor senta-se e instantaneamente a obra nasce, mas é muito interessante ver desta maneira descrita todas as etapas de criação do processo de escrita. Só tenho uma dúvida, é costume dar os trabalhos a ler a conhecidos ou são directamente submetidos a editoras? Pergunto isto por curiosidade, sobretudo no que toca a públicos-alvo. Penso que as editoras terão pessoas formadas ou com noção a que público determinado título que lhes chega se destina, mas e o autor? Tem o seu próprio público bem definido quando escreve a história e adapta a sua linguagem ou mesmo os acontecimentos a esse público, ou tenta apenas contar uma história?

Ana Vicente Ferreira disse...

Por vezes dou as coisas a ler a algumas pessoas em cuja a opinião confio, mas nem sempre.

Telma T. disse...

Muito interessante. Uma pergunta: Já te aconteceu ficares bloqueada na pesquisa ou achares que a pesquisa não é suficiente para levares a ideia da história em frente porque o resultado da pesquisa não te dá a segurança para o fazeres?

Ana Vicente Ferreira disse...

Até agora não. Já me aconteceu ter de alterar alguns elementos na história porque a pesquisa me disse que não se podiam passar assim. Também já houve uma ou outra vez em que tive que recorrer a amigos para me ajudarem com alguns pormenores técnicos que eu não estava bem a apanhar sózinha.

Isis disse...

Muito boa esta tua postagem. Passo todos os dias aqui pra ver se há novidades no coração de lobo (adorei o sangue de dragão), mas é a primeira vez que comento. =D
Também costumo ter ideias muito frequentemente o que na maioria do tempo se torna frustrante. Por vezes tento misturar algumas e na cabeça o resultado é bom, no papel a história é diferente. Outras vezes estou a escrever algo, quando surge uma ideia que me faz tomar uma nova direcção (isto de 5 em 5 minutos) de tal forma que a história acaba por se transformar completamente. Estas inconstâncias deixam-me louca!! Depois, não consigo pegar no projecto durante um bom tempo e ele fica a modos que abandonado.
Costumo dizer para mim mesma que isto é resultado de uma mente caótica e de falta de experiência, mas não sei...
Também te acontece ou é só a mim? Tens algum conselho que me possas dar?

Ana Vicente Ferreira disse...

Mudar de direcção com tanta frequência não me acontece, quando me vem uma ideia para uma mudança na história normalmente faz sentido de acordo com a direcção que a história tem vindo a tomar e por isso limito-me a seguir.

Ter vontade de pegar noutros projectos quando estou a meio de um é mais frequente e aí só há uma coisa a fazer, é seguir em frente, mesmo que seja contrariada nos primeiros tempos, senão não acabo nada.

Ana C. Nunes disse...

Revejo-me muito no teu processo de escrita, embora confesse que até agora não tive que dedicar muito tempo à pesquisa, já que escrevo maioritariamente fantasia futurística e por isso posso improvisar.